sexta-feira, 20 de junho de 2008

Sete Pecados

Na velha casa de pedra
Com um telhado feito de palha,
A porta à base de casca de árvore,
Longe do mundo
Vivia uma feiticeira.
Não tinha família:
Teve mãe,
Mas morreu.
Teve pai,
Mas desapareceu na guerra.
Teve uma irmã,
Mas foi presa
Por exercer a mais antiga profissão.
Teve filhos,
Mas foram raptados.
Teve marido,
Mas foi influenciado.
Estava sentada no seu cadeirão,
Na sua sala descuidada,
Com o braço direito pousado no braço deste,
E com um cálice de vodka na mão.
Vestia um vestido verde sujo,
O seu cabelo castanho avelã estava apanhado.
O vodka queimava-lhe a garganta,
Mas aquecia-lhe a alma.
Malvada da velha
Que lhe tirou tudo
E enclausurou-a.
Sogra.
Oh, como a palavra a enjoava.
Esta tinha sido tão amável
Para com ela.
Estava na hora de lhe agradecer tudo o que tinha feito,
Pensou com um sorriso maléfico nos lábios.
Pensou que podia preparar
Uma receita tradicional da região,
Mas isso seria deveras suspeito.
Uma bebida.
Uma bebida com aqueles sete ingredientes.
Os ingredientes perfeitos.
Bebeu furiosamente o resto de vodka do cálice
E pousou-o no chão.
Levantou-se
E arrastou-se até à cozinha.
Lá estava a sua paixão,
Aquele precioso objecto.
Que a fazia lembrar das inúmeras maneiras
De como o podia usar.
O seu belo caldeirão preto.
Acendeu a lareira
E colocou o caldeirão pendurado por cima desta.
Despejou água lá para dentro
E foi buscar os sete ingredientes,
Com o conteúdo liquido.
Pegou no primeiro
E retirou um pouco
De luxúria.
Isso faria com que a velha
Tivesse todo o prazer sensual e material.
Do segundo retirou
Vaidade.
Ela iria querer todos a elogiá-la.
O terceiro,
O seu favorito,
Inveja.
Para desejar todo o mundo a seus pés.
Seguiu-se
A preguiça.
Riu-se alegremente
Ao imaginá-la deitada na cama
Exigindo comida
Sem que ninguém a acedesse.
Depois adicionou
Avareza.
O seu egoísmo viria ao de cima,
Como o azeite na água.
Estava quase,
Só faltavam mais dois.
O penúltimo,
A gula.
Iria esbanjar todo o dinheiro
Em coisas que não necessitava.
Por fim,
A ira.
Colocou muito pouco
Para que a velha
Não sentisse o desejo de vingança
Quando descobrisse
Quem a enfeitiçou.
Misturou tudo cuidadosamente.
Tinha os sete pecados mortais
Maravilhosamente combinados.
E,
Quando estava preparado
Encheu um cantil
E mandou o seu mocho
Deixar-lhe esta surpresa
À porta de sua casa.
Agora sim,
Brindava.
Podia não a matar,
Mas ao menos
Torná-la-ia na pior pessoa do mundo.
Afinal de contas
Foi a sogra
Que matou a sua mãe
À facada.
Foi a sogra
A fazer desaparecer o seu pai na guerra.
Foi a sogra
Que mandou prender a sua irmã
Quando o seu sogro
A procurou
Para o satisfazer.
Foi a sogra
Que raptou os seus filhos.
E,
Foi a sogra
Que influenciou o seu marido
A deixar a esposa
Afirmando que esta
Tinha pouca sanidade mental.
Agora brindava sozinha
Enterrada no seu cadeirão
Com o braço direito pousado no braço deste
Com um cálice de vodka na mão.

Eunice Vistas
2008.03.22

Revolta-te

Sai!
Pega no caixote que está na despensa,
Abre a porta de tua casa
E desce as escadas o mais depressa possível.
Chega à porta da rua
E prime o botão
Para esta se abrir.
Sai.
Corre para o meio da estrada
E pousa lá o caixote.
Deixa que os carros parem à tua volta
E que os condutores furiosos
Buzinem
E te mandem para sítios indesejados.
Deixa que as pessoas fiquem estupefactas
A olhar para ti
E que se questionem pelo motivo
Por tu estares ali.
Deixa que a tua mãe corra atrás de ti
E te diga para saíres do meio da estrada.
Deixa que os teus vizinhos vão às janelas
E varandas
E se riam das tuas figuras.
Deixa que as criancinhas te queiram imitar.
Deixa que a senhora da livraria acenda o cigarro
E se encoste a ombreira da porta
A ver o espectáculo.
Deixa que as sirenes da polícia se façam ouvir
E que os agentes saiam armados do carro.
Depois olha à volta
E vê o que causaste.
Por fim,
Enche os pulmões
Com a maior quantidade de ar que conseguires
E
Grita.
Solta o grito que te atormenta,
Solta o grito de raiva,
O grito de fúria,
O grito de ódio,
O grito de desilusão,
O grito de angústia,
O grito de preocupação,
O grito de desespero,
O grito de amor.
Grita até não teres mais fôlego,
Grita até o choro das crianças assustadas
Te acompanhar.
Grita até já não te poderem ouvir mais,
Mas grita.
Quando acabares,
Sorri
E olha à tua volta mais uma vez.
Vê a cara das pessoas.
Solta uma gargalhada
Se ainda tiveres voz.
Depois,
Desce do caixote,
Pega nele.
Passa pela porta de entrada
E sobe as escadas.
Abre a porta de tua casa,
Pousa o caixote na despensa
E faz o que quiseres.
Foste tu,
E só tu.
Não imitaste ninguém.
Não fingiste ser quem não eras.
Fizeste o que quiseste.
Revoltaste-te conta o mundo
E contra ti própria.
Desataste o nó que tinhas na garganta.
Não te arrependas disso.
Nunca te arrependas do que fizeste,
Mas sim do que deixas-te por fazer.
Tenta faze-lo se ainda fores a tempo,
Senão,
Nada feito.
Nunca mudes.
Sê sempre tu.
És “especial” assim.
Ama-te.

Eunice Vistas
2008.05.24

Train Of Death

“Todos a bordo,
Todos a bordo.
Última chamada para
Washington.”
A estação estava a
Transbordar de pessoas,
Umas ricas,
Outras sem um único tostão.
Enquanto uns comiam iguarias requintadas,
Outros comiam as migalhas
Que os meninos da nobreza
Deixavam cair acidentalmente
Das suas sandes
Cuidadosamente preparadas
Pela cozinheira fabulosa.
Naquele comboio,
Só entravam os ricos.
Viam-se as senhoras
Vestidas com vestidos aveludados
De diversas cores.
Uns de verde azeitona
Outros cor-de-rosa de rosa sujo.
Umas usavam chapéus simples
Outras usavam chapéus mais sofisticados.
Os senhores
Usavam smoking.
Casacos compridos,
Calças justas
E sapatos muito bem cuidados.
As crianças andavam
Consoante a vontade dos pais,
Quer quisessem,
Quer não.
Os pobres
Vestiam calças e camisolas velhas.
Vestes cujos ricos ignoraram
E mandaram para o lixo.
Naquele dia,
O comboio ia cheio.
Todas as cabines
Estavam ocupadas.
Os criados do comboio
Não tinham descanso.
Carregavam bandejas
Com inúmeras bebidas.
Umas saudáveis,
Para as senhoras,
E outras alcoólicas
Para os senhores.
As crianças andavam entusiasmadas
A correr de um lado
Para o outro do comboio
Através dos corredores
Deixando os criados
Com os nervos
Pelas pontas dos cabelos.
A viagem até Washington
Ainda era longa.
Iria demorar
Dois dias
E uma noite.
Já se conseguia
Ver o crepúsculo
No horizonte.
O sol queria descansar
Deixando que a Lua
O substitui-se.
As crianças encostavam-se às suas mães
Procurando conforto.
Agora o comboio estava escuro,
Silencioso,
Calmo…
Assustador.
Ela observava agora o comboio.
Já podia aparecer.
A sua cabeça
Era invadida por vozes
De mortais que não conhecia.
Começou a andar,
Silenciosamente.
Conforme a sua passagem
Pelas cabines,
Ela ia ficando acompanhada.
As almas dos ricos
Iam sendo roubadas
Aos corpos imundos
Dos ricos.
Eles eram as piores criaturas
Que jamais existira.
Os corpos mantiam-se quietos
E depressa começavam
A cheirar mal.
A superioridade
Relativamente ao povo
Apodrecia rapidamente.
Quando ela chegou
Até a porta que os separava
Do camionista,
Esta parou.
O camionista estremeceu
Com um arrepio frio
Apesar de estar calor la dentro.
Os criados agasalharam-se e enroscaram-se mais
Por entre os seus cobertores.
Eles partiram
Em direcção às nuvens
Até ao Inferno.
No dia seguinte,
Os criados gritaram de horror
Quando viram
Os corpos imóveis nos acentos.
O comboio parou na estação.
A viagem terminou.
Quem diria que esta seria
A última viagem deles.

Quem era ela?
Eu sei que sabem.

Eunice Vistas
2008.06.13

Herói

Tu estás lá.
Tu estás na entrada.
Está escuro.
Não consegues ver nada
Para além das árvores
Que fazem de cerca,
De portão
Àquela floresta.
Ouves barulho
Mas não sabes o que é.
Pode ser de animais,
Pode ser a conversa das árvores.
Só sabes que é de lá.
Sentes o hálito fresco
Vindo do meio da escuridão.
Na tua fronte
Está desenhada uma ruga de medo.
Na tua mão
Está uma corda fria e áspera.
Tão grande que seria capaz de
Percorrer todas as ruas e ruelas
Deste mundo.
Seria capaz de o abraçar inúmeras vezes.
Atada à corda,
Está ela.
Ela entrou dentro da floresta
E tu estás a sentir os seus movimentos.
Sentes esticões
E puxões.
De repente
Paras-te de a sentir.
Esperas-te
E continuavas sem sentir nada.
Decidis-te,
Então,
Entrar na floresta.
A tua preocupação é mais forte que o teu medo.
Deste voltas
Através das árvores
E chegas-te mesmo a passar pelo mesmo sítio
Duas vezes,
Até que a encontras-te.
Ela estava sentada no chão
A choramingar.
Envolveste-a com os teus braços
E as suas lágrimas foram secas contra o teu peito.
Ajudaste-a a levantar-se
E viraste-lhe costas.
Ela chamou-te
E tu não hesitaste
Em virar-te para trás.
Viste-a desapertar a corda
E ouviste-a dizer
“Vou voltar contigo,
Não me deixes
Por favor.”
Pegaste-lhe na mão
E trouxeste-a contigo
Para fora daquela escuridão.
Salvaste-lhe a vida.

Eunice Vistas
2008.06.08

Dedico este texto ao Miguel Cruz,
Fonte da minha inspiração.
Musico e guitarrista que tenho o privilégio de conhecer.
Obrigada.

Desabafos

Ela estava sozinha
No seu quarto.
A porta estava fechada,
Trancada.
Não só a porta
Mas também o seu coração.
Havia uma cama coberta
De cobertores e colchas.
Havia uma janela que
Era da altura da parede.
Através desta,
Ela via
As nuvens chorar,
Derramando lágrimas de sangue
Nos seus belos jardins.
Ela envergava uma camisa de noite de algodão
Bastante suava e fofa
Que lhe dava algum conforto.
Sentou-se na cadeira junto da secretária
E pensou.
Ela ama os seus pais
Apesar de nem sempre serem compreensivos como gostaria,
E ama o seu irmão
Que é parte dela.
Mas se assim é,
Porquê a tristeza que sente?
Porquê o vazio no seu peito?
Bolas,
Ela não tem motivos para estar triste.
Ela tem de ser feliz.
Ela quer ser feliz.
Mas porquê esse sentimento tão…
… Miserável?
Levantou-se da cadeira
E começou a andar às voltas no seu quarto,
Parando junto da janela.
A lua não se via
Como era de esperar.
Oh como ela pensou
E pensou
Enquanto admirava o exterior do seu palácio,
Mas não encontrava as respostas que queria.
Por isso,
Voltou a sentar-se na cadeira junto da secretária.
Abriu a gaveta
E de lá retirou
Folhas de papel velhas.
Abriu o tinteiro,
Pegou na pena
E levou-a à tinta negra,
Depois pousou a pena na primeira folha
E começou a redigir este texto.
Quando terminou,
Por mais incrível que pareça,
Sentia-se bem.
A tristeza desvaneceu-se
Tal como as nuvens triste lá fora.
E agora sim,
Via-se a lua.

Eunice Vistas
2008.04.17